Vez ou outra
nos deparamos com ensaios que valem a pena serem lidos, debatidos e
compartilhados, em especial aqueles que são escritos por intelectuais que
notoriamente estão acima da média, que dispõem de um vasta e rica cultura, e
que se tornam capazes de nos brindar com reflexões para além do usual, rasteiro
e pobre debate contemporâneo.
Hoje me
deparei com esta pérola de Mário Vargas Llosa, publicada no periódico O Estado
de S. Paulo, que comenta sobre a falta que intelectuais da estirpe de Albert O.
Hirschman fazem no mundo atual. Além de uma reflexão provocante, é muito
interessante ver um grande intelectual tecer comentário sobre a vida, a obra e
as visões econômicas e políticas de outro grande intelectual, em especial pelo
fato de que, apesar de estarem em espectros ideológicos diferentes, prevalece o
respeito e a admiração.
Vargas Llosa
e Hirschman possuem em comum o fato de terem ambos rompido com visões
revolucionárias de esquerda que os conquistaram na juventude. Mas, enquanto
Vargas Llosa se tornou um renomado pensador liberal, Hirschman caminhou numa
via mais desenvolvimentista – não por acaso ele é (ao lado de François Perroux
e Gunnar Myrdal), considerado um dos principais autores da chamada Economia do
Desenvolvimento.
Fica o
convite a leitura deste ensaio que resolvi publicar em meu blog pessoal.
Mario Vargas Llosa* -
O intelectual errante - O Estado de S. Paulo (2/2021)
Neste mundo abalado, a voz
equilibrada de Albert O. Hirschman há de nos fazer falta
Albert O.
Hirschman era um judeu-alemão que, assim como seus compatriotas Hannah Arendt e
Walter Benjamin, parecia ter lido todos os livros e falar todas línguas.
Nascido em Berlim no ano de 1915, ele fugiu em 1933 da Alemanha nazista, onde
começara a estudar economia e a militar no Partido Socialista. Continuou seus
estudos na França, em Londres, Trieste e se especializou em economia italiana,
enquanto viajava com frequência a Paris, onde ajudou a embarcar para os Estados
Unidos muitos intelectuais, professores e políticos perseguidos pelo fascismo.
Durante a Guerra Civil Espanhola, ao lado de George Orwell, foi membro das
Brigadas Internacionais, por simpatia ao Poum, um pequeno partido de inspiração
trotskista. Acabou ferido na guerra, mas sempre se recusou a falar sobre sua
experiência na Espanha. Mais tarde, seguiu para os Estados Unidos, onde, além
de outros doutorados, continuou sua luta intelectual em prol do socialismo
democrático.
Eu o conheci
no Instituto de Estudos Avançados de Princeton, uma instituição admirável, que
acolheu Albert Einstein quando ele se refugiou nos Estados Unidos. Ali, os
membros não precisam lecionar, apenas pesquisar. Eles dispõem da biblioteca da
universidade e de recursos para organizar simpósios e conferências relacionadas
aos temas em que trabalham. Hirschman não gostava de lecionar, preferia a
pesquisa. Trabalhou para a Fundação Ford e para o Banco Mundial e lecionou nas
melhores universidades. Viveu vários anos na Colômbia e conhecia como ninguém
os problemas da América Latina (e do mundo inteiro). A Claves de Razón Práctica
acaba de publicar uma nova edição de seu último livro, La Retórica
Reaccionaria, em uma nova tradução que traz um excelente e extenso prefácio de
Joaquín Estefanía, bem como um posfácio não menos interessante de Alberto
Gerchunoff.
A obra de
Hirschman não é muito conhecida na Espanha, embora o seja na América Latina,
nos Estados Unidos e no resto do mundo ocidental, e muitos, como Estefanía,
lamentam que ele nunca tenha recebido o Prêmio Nobel de Economia, o qual
merecia pela originalidade, riqueza e amplitude de seu trabalho. Decepcionado
com os grandes esquemas revolucionários aos quais aderira na juventude,
defendeu a ideia de pequenos avanços econômicos e sociais, entre eles a
liberdade, para garantir o progresso e abrir ao Terceiro Mundo a possibilidade
de desenvolvimento e democracia política. Ao mesmo tempo que, nos seus ensaios,
refletia sobre essa ação prática e “o direito de se contradizer”, ele combatia
economistas liberais como Friedrich Hayek – apesar de o livro O Caminho da
Servidão ter lhe causado um grande impacto – ou Milton Friedman, para não falar
dos Chicago Boys chilenos que haviam se aliado a um ditador para promover as
reformas econômicas que propunham.
Chegara ele à
conclusão de que o comunismo estava morto e de que a única solução justa para
os problemas da sociedade humana – desigualdade, exploração, ditaduras e
enormes rupturas sociais – era o capitalismo à maneira escandinava, moderado
pelo voto popular, pela seguridade social e por outras medidas adotadas pelo
Estado para reduzir as distâncias e melhorar a condição econômica de
trabalhadores e camponeses? Ele nunca o disse explicitamente, mas tenho a
impressão de que sim, embora o homem sábio e culto que conheci também fosse
muito prudente e não gostasse de se expor muito, pensando no meio em que vivia
e escrevia.
Este livro,
La Retórica Reaccionaria, começou a ser escrito na época de Ronald Reagan e
Margaret Thatcher, que aterrorizaram populistas e progressistas de todo o mundo
porque, embora conservadores, ambos os chefes de estado promoveram reformas
liberais muito ambiciosas que, entre outras coisas, enterraram o comunismo e
pareceram iniciar o renascimento da democracia e do capitalismo. Mas não foi
assim que aconteceu, e o que veio a seguir foi, antes de tudo, um novo
populismo de direita, tão nefasto quanto os populismos de esquerda, que – como
aconteceu com Donald Trump nos Estados Unidos e Boris Johnson no Reino Unido –
desequilibrou com sua demagogia as ideias que afirmava encarnar.
A tese de La
Retórica Reaccionaria é muito simples e, segundo Hirschman, nasceu das objeções
de Edmund Burke à Revolução Francesa do século 18. Em Reflexões sobre a
Revolução na França, Burke argumentou que, ao contrário do que alegavam os
revolucionários, as reformas promovidas pela guilhotina e pelas revoltas
populares, em vez de revolucionar a sociedade na direção certa, destruiriam todos
os avanços sociais e políticos alcançados até então. Essa tese, com os
acréscimos sutis da perversidade, da futilidade e do risco, será repetida por
uma longa lista de pensadores – entre os quais Hirschman cita o enlouquecido
Joseph de Maistre, que acreditava que Deus havia mandado a Revolução Francesa
para castigar os seres humanos por sua impiedade – até mesmo por economistas
rigorosos como Hayek ou pelo tão moderado Isaías Berlin, que sempre defendeu
uma posição muito semelhante à sua e fomentou o diálogo entre esquerda e
direita.
A voz de
Albert O. Hirschman há de nos fazer falta neste mundo abalado, quando menos se
esperava, por um coronavírus que causou estragos quando acreditávamos que os
seres humanos e a ciência haviam conquistado o mundo natural. Mas não foi assim
que aconteceu e, quando a pandemia passar, os sobreviventes deste cataclismo
medieval vão despertar num mundo empobrecido, no qual o Estado terá crescido em
toda parte, sufocando a liberdade mais do que já sufoca, no qual os novos populismos,
impregnados de racismo e nacionalismo irracional, se preparam para acabar com
as últimas instituições e tomar o poder. Não será fácil, claro. A batalha será
duríssima e nela poderia ter um papel fundamental alguém como Hirschman, que
acreditava nas ideias e no diálogo entre adversários, que desconfiava de
esquemas totalizantes, que propunha avanços modestos, sem violência e sem
vítimas, resultantes de um diálogo em que os antigos inimigos chegassem a
consensos e a acordos concretos.
É a mais bela
postura e, em seus livros, Albert O. Hirschman a defendeu de maneira
persuasiva. Era um homem decente e limpo, de enorme cultura e, quando já estava
bem avançado nesse último livro – ele próprio o conta em suas páginas –
percebeu que a retórica “reacionária” que descrevia também podia se aplicar,
milimetricamente, a uma esquerda que, sobretudo na América Latina, era sectária
e intolerante e tendia a ver as coisas de um só lado. Ele então tentou mudar o
título do ensaio e trocar “reacionária” pela palavra “intransigente”, mas o
editor não permitiu. No entanto, no sexto capítulo de seu ensaio, essa nova
fórmula é bem explicada, e os elogios de Gerchunoff, dos quais compartilho
plenamente, premiam o realismo e o senso prático de Hirschman. É de atitudes
como as dele que vamos precisar nesta nova etapa incerta e nebulosa que se abre
diante de nós: desconfiar das grandes configurações que prometem trazer o
paraíso à Terra e promover aquilo que, por mais insignificante que pareça, faça
avançar a justiça e a liberdade e retroceder a hostilidade e a política
convertida em religião, onde há mocinhos e bandidos e só um deles sobreviverá.
O paraíso está muito longe para que consigamos trazê-lo à Terra. Entre os
ideais possíveis está algo mais modesto e eficaz, no qual Hirschman apostou:
aprender a conviver, pôr fim à brutalidade, dar à democracia e à liberdade o
dinamismo que perderam, salvar o que ainda é possível no sinistro panorama
futuro que se desenha diante de nós. / Tradução de Renato Prelorentzou
*É autor de ‘Pantaleão e as
Visitadoras’ e ‘Conversa no Catedral’
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