No ano de 2008, no dia 21 de abril na
cidade de Palmas (TO) o professor Armando Dias Mendes recebeu o Prêmio Samuel
Benchimol na categoria Personalidades. Compartilho na íntegra o seu discurso de
agradecimento.
"Ao receber a láurea honrosa que
porta o nome do eminente amazônida, amazonólogo e empreendedor Samuel
Benchimol, em meu nome e no nome de todos os laureados associo-me ao justo
tributo à sua memória. E procuro, de algum modo, corresponder à distinção recebida,
dizendo um pouco da minha saída em campo na busca de uma utopia amazônica
plausível e factível. E essa busca traça uma rota, o “Caminho de Parauassu”.
1. Aos 5 de junho de 1888, no
Parlamento do Império, deputado de nome João Penido, obviamente não amazônida,
interpelou o colega Mâncio Ribeiro, do Pará: “Onde é essa Amazônia de que
o nobre deputado tanto tem falado?” Já ao fechar 1999, pesquisa
revelava que as três ‘marcas’ mundialmente mais conhecidas eram Jesus Cristo, a
Coca-Cola e a Amazônia. Alguma coisa acontecera, no ínterim, capaz de explicar
por que e como uma região, antes desconhecida dentro do próprio país, se
tornara o espaço natural e social mais visível na face da terra.
Essa alguma coisa foi a transformação
do ecúmeno global que, tendo destruído grande parte das florestas nativas ao
redor do mundo, faz da hiléia amazônica a maior e mais relevante selva
primitiva remanescente. Equivale a perto de um quarto das matas originais
poupadas – e em termos relativos tende a ganhar importância maior – o que a
converte na esperança ultima de preservação da vida no planeta. A tanto
autoriza o conhecimento crescente – ainda incipiente – da biodiversidade que
abriga. E também o reconhecimento do papel chave do enorme caudal de água doce
líquida potável que acumula. Assim, é compreensível que ela se tenha convertido
no campo de liça e na faísca que incendeia a cobiça universal.
A transformação da sua imagem ao
redor do mundo consolidou o enigma e instalou o paradoxo que torna a Amazônia
degradada no alvo e estigma da ira mundial, uma espécie de Geni, a apedrejada
-- aquela do Chico Buarque – mas globalizada. Isso, por um lado. E pelo outro,
converte a Amazônia preservada no objeto de culto e anima derradeira da
humanidade. Algo próximo da Amélia, a “mulher de verdade” que trabalhava com
fome – aquela de Mário Lago -- também em escala planetária.
Nem uma coisa nem outra é a imagem do
caminho a percorrer e, contudo, é ambas as coisas. E assim o paradoxo assume o
feitio de oxímoro.
2. Como os brasileiros em geral – os
amazônidas e principalmente os não amazônidas – lidam com semelhante
perplexidade? Em maioria, lidam mal. Cultivam no mundo afetivo uma epidérmica
simpatia ufanista pela Amazônia, seu imaginário e seus mistérios. No mundo
efetivo flutuam, desarvorados, entre dois fundamentalismos nefelibatas: o
ecológico e o econômico.
O primeiro, mendaz e arrimado em
Euclides de cem anos atrás sustenta que no cenário majestoso o homem é
ainda um “intruso impertinente”. O segundo, voraz, pretende que o puramente
natural é que é abstruso e é inevitável dominá-lo – porque assim está escrito
(Gn 1,26) – e urge transfigurá-lo de fútil em útil.
Mas se décadas atrás havia um ou dois
milhões de brasileiros “amansando o deserto”, hoje somos 25 milhões, e pois,
deserto ele já não é. Os dois fundamentalismos são mutuamente
excludentes. Com efeito, e só para argumentar, o modelo extrativista – o jardim
a ser cultivado e guardado, como determinado em outra passagem da escritura
citada (Gn 2,15) - se estendido aos 25 milhões exigiria um Éden ideal, com
superfície territorial cinco vezes maior do que o real. O modelo
industrialista, ao seu turno, precisaria de pelo menos uma dúzia de pólos
manufatureiros similares ao manauara para abarcar a totalidade dos amazônidas,
com fatais rebatimentos na textura econômico-social, espacial e política
do país.
Longe de serem duas possibilidades
antepostas, são duas absurdidades de soma zero.
3. Que coisas tenho (re)buscado, na
contramão da história do passado, em busca de sólidos alicerces para a história
do futuro? Coisas simples, todavia densas e em si mesmas tensas. E em
alguns aspectos são imensas. Tais como:
·
Reconhecer que a Amazônia não pode ser mera extensão, mas deve tornar-se
clara intenção nacional. Reta intenção, de preferência.
·
Logo, assumir que o clamor de Parauassu não configura questão
regional mas questão nacional de primeira linha.
·
E disso deduzir que a sua preservação e valorização longe de ser favor
facultativo, constitui dever impositivo do país.
·
Suplantar, para tanto, o caráter bi-polar, contraditório e ambíguo da
postura do Estado nacional frente à região.
·
Pugnar, em coerência, para que as ações de governo na Amazônia sejam,
basicamente, ações pela Amazônia.
·
Entranhar nos fundamentos dessa Agenda ou caderno de encargos o
princípio fundamental de que a Amazônia suporta usos, rejeita abusos.
·
Decidir para valer que às metas regionais correspondam modos, meios e
métodos quantitativa e qualitativamente compatíveis.
·
Perceber que a metanóia regional a perseguir passa pela nacional. Pela
conversão nacional, sincera e efetiva à Amazônia.
·
Levar a que o Estado do Brasil devote ao Estado do Grão-Pará amor
benevolente, não concupiscente. Atitude de guarda, não de domínio.
·
E enfrentar o desafio de manter a Amazônia de pé -- a sua natura e a sua
cultura -- todavia atuantes, não expectantes.
·
Praticar, enfim, fidelidade aos dois imperativos categóricos do momento:
o envolvimento com o hábitat, o desenvolvimento do habitante.
·
E ajudar a engenhar as mudanças de hábitos requeridas para a
sustentabilidade da naturalidade, e em última análise, da sociedade.
·
Inscrever, em suma, com pertinência, a suma relevância da Amazônia nessa
Agenda e nela perseverar com pertinácia.
·
Tanto equivale, é certo, a inventariar o potencial amazônico, mas
sobretudo a inventar-lhe um futuro melhor. E inovar, com apoio em uma forte
vontade política, não só dos políticos mas da polis nacional.
Uma vontade coletiva, cidadã, cívica.
Esse, o almejado paradigma.
4. Esse o ritornelo que entôo há
décadas, repetidas vezes com essas mesmas palavras. Esses, os argumentos
expostos em alguns livros e muitos outros escritos. E muitas falas proferidas
em público e em privado, em solilóquios e colóquios, arredio a circunlóquios.
Partes dessa meditação recorrente
vieram a cair prematuramente no domínio público. Que assim seja. Outras são
reproduzidas aqui e ali aparentando ineditismo por novos descobridores e
inventores indígenas e alienígenas, e sejam bem-vindos. São encontradiças junto
com seus descobrimentos, seus inventos e seus deslumbramentos em lugar de honra
nas suas Relações, relatos, relatórios.
As utopias de cada momento, porém,
são atravessadas por apatias que varam todos os momentos. Para sacudi-las é que
iniciativas como esta -- e Samuel Benchimol é o seu apropriado ícone – são
aptas. Provam-no as distinções proclamadas nas áreas ambiental, social e
econômico/tecnológico.
Dignificado e estimulado, resta-me –
falando uma vez mais por todos os agraciados – saudar respeitosamente os
idealizadores e realizadores do Prêmio. A comenda pessoal, essa eu a incorporo
com singeleza ao meu currículo já em preocupante contagem regressiva. E
prossigo na incessante caminhada no Caminho do Parauassu ou Grão-Pará, ou Rio
Grande das Amazonas. Ao fim e ao cabo a Amazônia.
Esse, o caminho a palmilhar
incansavelmente. Esse, na verdade, o caminho líquido e certo em que é preciso
não se deixar levar de bubuia no remanso e muito menos na pororoca. Nele cumpre
navegar com uma boa carta de marear, posto que estamos postos sobre o Rio-Mar.
Pois navegar – e agora sou eu que vou de bubuia com Pessoa - navegar é preciso.
Como dizia a seu modo, em outro
contexto vivencial, filho meu de nome Aluísio – já por Deus levado faz tempo,
Deus seja louvado – mais do que existencialistas tardios precisamos ser
‘insistencialistas’ antenados.
A senha é essa: não
desistir. Insistir, insistir, insistir".
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