A frequência e a dimensão com que
grandes manifestações populares têm ocorrido no Brasil foram objeto da reflexão
do Conselho Federal de Economia, reunido em Salvador, no encerramento do
Encontro dos Economistas do Nordeste e na expectativa do início de mais um
semestre letivo.
A
maioria das reivindicações da população reside no aumento da oferta e na
melhoria da qualidade dos serviços públicos de um modo geral, entendendo que
isso seria possível se os recursos fossem melhor utilizados. A este quadro associa-se
o sentimento de que a representação política deixou de mediar os interesses da
população nas suas relações com o Estado. A desconfiança na classe política inspira
toda a sorte de discussões sobre o que poderia constituir um novo modelo de
institucionalização, que favoreça a incorporação da sociedade aos mecanismos de
participação popular e nas decisões sobre o rumo das ações governamentais.
É
relevante, nesta hora, que não nos deixemos levar por análises precipitadas e
superficiais. A crise de representatividade das instituições políticas não é um
fenômeno exclusivamente brasileiro; muito pelo contrário, discutem-se os
caminhos da democracia ocidental já há algumas décadas. E manifestações
massivas também se tornaram comuns em várias partes do mundo. Neste sentido,
embora seja grande a tentação de comparar as nossas manifestações a outras mais
recentes, elas parecem assemelhar-se mais à Ocuppy Wall Street e, em
particular, a maio de 1968, na França, talvez por seu caráter difuso,
aparentemente desprovido de lideranças institucionais ou pessoais e, de certo
modo, errático.
Não
vivemos em um regime autoritário, e a análise fria do conjunto de indicadores
econômicos e sociais do Brasil oferece um quadro pelo menos razoavelmente
positivo. Por outro lado, a ação dessas massas é dirigida contra as autoridades
de todas as tendências e contra as instituições tradicionais; nisso não poupa
sequer a mídia convencional. Afinal, não se trata, aqui, de protestar contra o
governo ou os governos, mas questionar o papel do Estado e expressar, de algum
modo, o desconforto com o modo de vida atual, urbano, em grande medida por quem
já está inserido no mercado de consumo de massas e está seguramente integrado a
uma grande rede de informações que passa ao largo dos sistemas de comunicações
tradicionais.
Em
todas essas manifestações, transparece uma ânsia de atribuir e exigir de uma
instituição coletiva, superior, o atendimento de anseios represados há muito
tempo, que incorporam um conjunto mais amplo de aspirações de toda a sociedade e
que se materializaram principalmente nas áreas de saúde, educação e transporte
coletivo urbano. O caso do transporte coletivo urbano, em particular, é também
o símbolo de um modelo anacrônico, baseado na ascensão social e no
individualismo, representado, em grande parte, pelo processo de crescimento
alavancado pela indústria automobilística.
Como
pano de fundo, a cidade é também o locus onde
as pessoas se amontoaram desordenadamente, a violência sutil ou flagrante se
instaurou e banalizou e os laços de solidariedade familiar e social se
esfacelaram.
O
caos em que se vive hoje nas metrópoles brasileiras é o retrato do acúmulo de
décadas de erros e omissões em que mergulharam todas as tentativas de
desenvolver uma integração orgânica de planejamento regional e urbano: o
Brasil, em muito pouco tempo, se transformou de rural em urbano, amontoou-se em
torno de verdadeiras megalópoles e inchou e marginalizou as suas periferias.
Mesmo
para as pessoas que conseguiram e mantêm um emprego, têm uma renda razoável e viram
ampliadas as oportunidades de acesso ao ensino formal, é preciso algo mais. Não
basta o diploma; requer-se formação de qualidade, que habilite para ocupações
mais valorizadas. Satisfeitas as necessidades básicas, garantida a sobrevivência,
quer-se a certeza de que estaremos todos contemplados com os avanços da ciência
médica e de que poderemos envelhecer com higidez e dignidade. Quer-se ainda ter
a tranquilidade de saber que a violência não vai revogar o nosso direito de ir
e vir. Tornamo-nos mais conscientes e exigentes.
Paralelamente,
trava-se um diálogo de surdos entre a classe política e o conjunto da
sociedade. Só que a classe política é parte dessa mesma sociedade, ao mesmo
tempo que a política continua sendo o veículo preferencial através do qual as
demandas sociais são canalizadas. Os vícios tantas vezes apontados nos
políticos são o reflexo de uma sociedade que ainda não quis assumir-se, que
delega a sua vontade e não exige uma contrapartida.
Em
momentos como este, é grande o risco de sucumbirmos a soluções autoritárias ou
paternalistas, de cedermos às tentações de reforçar alianças baseadas em
modelos assistencialistas, como um traço indelével que deu curso a toda a
História deste País.
Que
os excessos cometidos, inclusive por todos os tipos de oportunistas e
marginais, não provoquem o refluxo da simpatia e dos apoios que o movimento
conquistou no início de sua caminhada. Os temores da maioria silenciosa e
acomodada, as ameaças veladas de descontrole e anarquia, a desorganização da
sociedade civil, tudo isso pode apagar rapidamente da memória esse lampejo,
esse espasmo de grandes contingentes da população insatisfeita, que continua
buscando espaços e procurando alternativas.
Que
todas essas reações sirvam especialmente para despertar os economistas, para
que eles comecem a mudar o foco de suas preocupações, para que comecem a
perceber a realidade não apenas através dos frios números e de suas análises
meramente quantitativas. Comecemos por dar
valor às dimensões qualitativas da vida e da natureza. Quem sabe possamos
tomar algumas lições do pequenino e distante Butão, onde, mais importante que o
PIB ou a renda pessoal, é o índice da felicidade geral, objetivo final do
estudo da Ciência Econômica.
CONSELHO FEDERAL DE
ECONOMIA
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