Isaltino Gomes
Coelho Filho
Mira y
López classificou a ira como “o gigante rubro”. Junto com o medo, o amor e o
dever ela forma os Quatro gigantes da alma, título de sua obra clássica. Se o
orgulho, que é o culto a si mesmo, encabeça a lista dos pecados, caminhando
pari passu à ambição (“Sereis como Deus”), a ira é, cronologicamente, na
Bíblia, o segundo pecado: “Caim ficou furioso” (Gn 4.5), e “Então, o Senhor
perguntou a Caim: Por que te iraste?” (Gn 4.6). A ira está presente desde os
albores da humanidade. E sempre com maus resultados.
A ira é o pecado que gera o assassinato (1Jo
3.15). Costuma-se dizer que ela é má conselheira, porque priva a pessoa da
razão e a coloca sob o domínio dos instintos. A pessoa perde a noção de
valores, de regras de conduta, e assume um comportamento ensandecido. A ordem
de Saul para que Doegue matasse 85 sacerdotes e depois homens, mulheres,
crianças, bebês e até os animais de Nobe, mostra como a ira enlouquece (2Sm
22.17-19). Este trágico episódio na vida de Saul deixa claro que a ira leva a
pessoa a agir como animal descontrolado. Ela perde toda a sua racionalidade.
Sucedeu a mesma coisa com seu xará, no Novo
Testamento. Atos 9.1 registra que Saulo “respirava” ameaças contra os
discípulos de Jesus. O grego é empneo, cuja forma verbal pode levá-lo a ser
traduzido, sem forçar a situação, como “bufava”, respiração típica do animal
selvagem. Curiosamente, Jesus lhe afirmou que ele se comportava como animal, na
expressão “recalcitrar contra os aguilhões” (At 26.14), a figura do boi que
escoiceava o ferrão que o impelia no serviço. O zelo religioso de Saulo se
transmutou em ira descontrolada (“cada vez mais enfurecido contra eles”, disse
ele – At 26.11). Muito zelo religioso nada mais é que ódio, ira, fúria contra
os discordantes. É “zelo, mas não com entendimento” (Rm 10.2). É uma
advertência muito séria porque, em algumas ocasiões, a defesa da fé ou do que a
pessoa julga ser a doutrina correta, é feita com ódio. Algumas apologias
exsudam ira. Como disse alguém: “Nunca os homens fazem o mal com tanto
entusiasmo como quando o fazem em nome de Deus”.
É triste, mas é verdade: temperamentos não
controlados pelo Espírito (nada a ver com o livro homônimo – é que a expressão
é correta) usam o evangelho como pretexto para dar vazão à sua carnalidade. A
violência verbal desancando irmãos que pensam de maneira diferente não é santidade.
É pecado. Lembra-me de um personagem de Umberto Eco, ironizando as querelas
teológicas dos cristãos: “percebi quanto os cristãos podem se esfolar uns aos
outros, por uma simples palavra” (Baudolino, p. 35). Certa vez, preguei em uma
igreja e expendi um conceito que o pastor julgou ser arminiano. Tornei-me, aos seus olhos, “cão pirento”,
como se diz no Amapá. Ele se recusou a
me levar à saída, após o culto, e virou-me as costas quando fui cumprimentá-lo.
Foi zeloso com sua doutrina, e iracundo no seu procedimento. Um exemplo da
típica espiritualidade deformada, mas chamada, muitas vezes, de “ira santa”. O
episódio de Jesus expulsando os vendilhões do templo é o trecho bíblico mais
apreciado pelos santos iracundos e o eixo hermenêutico que dá suporte à sua
postura.
A virtude que se antepõe à ira é a paciência.
Que não deve ser confundida com resignação. O melhor termo para ela é
makrothymia, uma extraordinária capacidade de suportar situações adversas. Não
é superthymia, grande capacidade, mas makrothymia, enorme capacidade. Como um
macromercado é maior que um supermercado. O termo alude a uma enorme disposição
de sofrer o mal sem revidar. Jesus foi macrotímico: “Ele foi oprimido e
afligido, mas não abriu a boca; como um cordeiro que é levado ao matadouro, e
como a ovelha muda perante os seus tosquiadores, ele não abriu a boca” (Is
53.7).
Tiago orientou seu público: “Chamamos felizes
os que suportaram aflições. Ouvistes sobre a paciência (makrothymia) de Jó e
vistes o fim que o Senhor lhe deu. Porque o Senhor é cheio de misericórdia e
compaixão” (Tg 5.11). Fala-se da paciência de Jó, mas ele não foi paciente, no
sentido de passividade de aguentar calado. Queixou-se por todo o livro. Mas manifestou
uma enorme capacidade de suportar tudo. Um bom modelo. Há igrejas que se
dividem por causa da ira dos crentes, por absoluta falta de makrothymia. Há
dissensões na denominação pelo mesmo motivo. Suportar o mal está fora de moda.
O negócio é “bateu, levou”. Aliás, um bispo televisivo avisou à Globo, certa vez,
que com eles não tinha “essa de dar a outra face”. Com eles era “bateu, levou”.
A ira é pecado, e não virtude. Sua ausência,
sim, é virtude. “A ninguém devolvei mal por mal” (Rm 12.17), e “Abençoai os que
vos perseguem; abençoai e não amaldiçoeis” (Rm 12.14). A troca de ofensas, tão
amiúde na liderança evangélica, mormente pela mídia, é uma vergonha para o
evangelho. Não parecem santos, mas arruaceiros de bar.
Peçamos graça a Deus para vencermos nossos
sentimentos agressivos contra as pessoas, e que sejamos cada vez mais parecidos
com Jesus. Caim se irou e matou seu irmão, porque era do Maligno (1Jo 3.12).
Jesus pediu perdão pelos inimigos, porque era o Filho de Deus (Lc 23.34). Mais
tarde, mostrando que se tornou filho de Deus, Estêvão pediu que seus assassinos
fossem perdoados (At 7.60). Os filhos de Deus não se regem pela ira, e com a
graça do Senhor a superam. Cultivam o perdão, ao invés de acalentar a ira.
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