Escrito por Fernando
de Aquino Fonseca Neto (*)
Dezenove anos depois, outro “muro” foi
seriamente abalado, Wall Street, agora como conseqüência de um “excesso de
mercado”. O chamado “neoliberalismo”, que tanto tem prejudicado o crescimento
econômico e a distribuição de oportunidades entre os países pobres e
emergentes, gerou uma crise financeira com efeitos bem reais no mundo
desenvolvido. Para os seus defensores, nos países ainda não desenvolvidos o
desenvolvimento não tem sido satisfatório porque as reformas liberalizantes não
foram suficientes. Os céticos de tal receituário, todavia, têm a seu favor a
hipótese que o único processo de desenvolvimento capitalista a ter êxito contando
apenas com as forças do mercado foi o da Inglaterra, possivelmente por ter
partido na frente.
É impressionante a parcela dos trabalhos
acadêmicos de economia, ao menos nas últimas décadas, que trazem entre seus
principais resultados recomendações acerca da participação do Estado na
economia. No final das contas, resta a impressão de que a participação mais
adequada do Estado seria uma questão de crença e estaria baseada em uma
determinada concepção de natureza humana, mesmo quando os “crentes” não se dão
conta. Num enfoque mais economicista, poderíamos dizer que depende dos
“microfundamentos” adotados. Com tal ponto de vista, é mais fácil aceitar que
as opiniões mais extremas sobre essa participação, como a “marxista” e a
“neoliberal”, se apoiam em microfundamentos bastante toscos.
O que poderia ser mais utópico que todos
os seres humanos se tornarem plenamente virtuosos, solidários e construtivos,
após a superação do capitalismo, como profetiza o marxismo? Por outro lado, não menos utópica seria uma
sociedade constituída de unidades familiares autônomas capazes de sempre fazer
as melhores escolhas, como assume o neoliberalismo. É interessante notar que
ambos alimentam alta expectativa da natureza humana, de um lado a superação das
atitudes destrutivas, tão presentes no comportamento humano em geral, de outro,
a faculdade de fazer as escolhas, de forma autônoma e para todos os períodos
futuros, que levariam a unidade familiar ao bem-estar total máximo permitido
por sua dotação inicial de recursos e habilidades.
O que muitos não sabem é que a própria
teoria econômica fornece muitas indicações sobre questão da participação do
Estado na economia. A teoria neoclássica argumenta que, sob certas condições, o
mercado alocará os recursos de modo a maximizar o bem-estar de todos os
agentes, dadas as suas dotações iniciais. Observem que são admitidas duas
restrições ao mecanismo de mercado: “sob certas condições” e “dadas suas
dotações iniciais”. A primeira seria equivalente ao que, no jargão dos
economistas, chama-se “ausência de falhas do mercado”, ao invés de considerar
que as falhas estariam nos microfundamentos, os quais, quanto mais próximos do
comportamento humano como de fato ele é, melhor funcionam como base para
dimensionar a participação mais apropriada do Estado. Nesse sentido, avanços
têm sido registrados na teoria econômica, tais como:
• Aplicações da teoria dos jogos, em que os agentes
teriam um “comportamento estratégico”, onde cada um leva em conta também o que
espera do comportamento dos demais envolvidos. Com isso, a hipótese de
otimização individual, sem considerar as possíveis reações dos demais agentes,
como assumido pela teoria neoclássica tradicional, seria relaxada.
• Desenvolvimento da economia da informação, onde a
hipótese neoclássica de que os agentes têm acesso e processam corretamente
todas as informações relevantes para realizar suas escolhas, também passa a ser
relaxada.
• Modelos de formação de bolhas, com a hipótese de
agentes heterogêneos, como o caso em que os racionais, da teoria neoclássica
tradicional, passam a interagir com os chamados “agente exuberantes”, que
tendem a exagerar em suas avaliações, otimistas ou pessimistas, como grande
parte das pessoas no mundo real.
Tais avanços justificam a atuação do
Estado (i) para regular monopólios e cartéis que praticam barreiras à entrada,
decorrentes de comportamento estratégico, (ii) para manter sistemas públicos de
previdência, em função das limitações dos agentes realizarem otimização
intertemporal de longo prazo, e (iii) para regular mercados financeiros e de
capitais, minimizando a formação de bolhas que possam ter efeitos sistêmicos
perniciosos. Acrescente-se a tais inovações nas justificativas de intervenção,
“falhas do mercado” percebidas há mais tempo, como os oligopólios e monopólios
naturais, que também mostram a necessidade de regulação pelo Estado.
Quanto à segunda restrição, relativa às
dotações iniciais de recursos e habilidades, a teoria econômica também fornece
algumas indicações. Para tanto, observe-se que a principal forma de
participação do Estado na economia é transferindo, compulsoriamente, recursos
entre os agentes. Assim, agentes com recursos excedentes tenderão a ter parte
deles apropriada pelo Estado, enquanto agentes com carência de recursos
tenderão a se beneficiar da atuação do Estado de forma mais visível. Não é por
acaso que os mais ricos em geral preferem menor participação do Estado, e os
mais pobres desejam exatamente o inverso. Então, seria possível alguma
objetividade nessa questão? Uma solução foi proposta pelo filósofo americano
John Rawls, a partir do que chamou de “véu da ignorância”, que seria uma
situação hipotética em que os agentes deliberariam sobre a participação
adequada do Estado antes de saber as dotações iniciais que teriam.
Então, tais condições possibilitariam
uma escolha objetiva, o que tenderia levar à aceitação da participação de
Estado para garantir condições mínimas aos agentes com menores dotações
iniciais. Esse princípio estaria plenamente ajustável à abordagem neoclássica,
tendo sido incorporado com a “Função de bem-estar social hawlsiana”. Nesse
contexto, essas “condições mínimas” seriam as suficientes para minimizar as
desigualdades de oportunidades, pois mais que disso começaria a ser injusta com
os que possuem recursos gerados com esforço e competência próprios, ou
transmitidos e recebidos livremente de alguém, como os pais, para passar para
outros usufruírem.
Além dessas restrições ao mecanismo de
mercado, a teoria econômica dá suporte à participação do Estado com outros
propósitos, dos quais se destacariam a manutenção do equilíbrio macroeconômico
e a promoção do crescimento econômico. Ainda que alguns economistas discordem,
a maioria recomenda um “ativismo” do Estado, tanto conduzindo a política macroeconômica
para compatibilizar a demanda agregada com a capacidade produtiva da economia,
de modo a condicionar o máximo de emprego dos recursos com estabilidade nos
níveis de preços, quanto com políticas para incentivar os investimentos.
Neste último propósito, é interessante
notar abordagens totalmente divergentes, com propostas totalmente diferentes,
mas que envolvem a participação do Estado. Nesse sentido, vale citar dois
trabalhos recentes: (i) Crescimento Clássico e crescimento retardatário, de um
de nossos decanos, o estruturalista João Paulo de Almeida Magalhães, defendendo
que o Estado direcione os investimentos, tanto públicos quanto privados, para
setores e cadeias produtivas em que haja mercado sustentável em evolução; (ii)
Desigualdades Regionais no Brasil, de um economista mais ortodoxo, Alexandre
Rands Barros, propondo um outro tipo de intervenção do Estado, qual seja, na
promoção de investimentos em capital humano como forma de induzir os
investimentos em capital físico. Não é objetivo deste artigo entrar no mérito
dessas propostas, mas apenas ilustrar que abordagens tão diferentes terminam
recomendando a participação do Estado.
Pode-se assumir, então, que a
participação adequada do Estado estaria entre a máxima e a mínima. Nessa
altura, deve-se ainda descartar a crença de que a corrupção ocorre apenas
quando o Estado está envolvido. Também existe corrupção dentro e entre as
empresas. Assim como as falhas do mercado, as falhas do Estado precisam ser
corrigidas por adequados sistemas de incentivos e de controle. Enfim, para um
fechamento meio inspirado, pode-se arriscar em dizer que o mercado é, ao mesmo
tempo, uma selva e um espaço libertário, assim como o Estado é, ao mesmo tempo,
um Leviatã e um ente civilizatório.
(*) Doutor em economia pela Universidade de Brasília
(UnB) e Presidente do Conselho Regional de Economia de Pernambuco (Corecon-PE)
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